quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Declaração de amor/ódio a São Paulo


Pensei em não escrever sobre São Paulo. A fria crueldade com que a cidade se despiu para mim assustou-me. São Paulo não teve pudores em se mostrar tal qual como é. São Paulo não me poupou ao choque. Revelou tudo de uma vez, e sacudiu-me do meu torpor sem sequer pedir licença.

Eu já gostava muito do Brasil, mesmo sem nunca lá ter estado. A grandiosidade do país-irmão e e das suas gentes já me faziam amá-lo há muito tempo. Há uma História, uma língua, uma cultura que nos ligará para sempre. Tenho amigos brasileiros, e tenho amigos portugueses que trocaram o pequeno Portugal pelo imenso Brasil. Talvez a minha relutância inicial em escrever sobre São Paulo se tenha devido ao medo de ofender os queridos brasileiros e portugueses que um dia se apaixonaram por esta cidade que carrega um Portugal inteiro dentro de si (cerca de 11 milhões de habitantes só no município). Contudo, eu sei bem que os brasileiros são os primeiros a fazerem uma auto-crítica em relação ao seu país e a rebelarem-se contra a injustiça e corrupção.

Eu já andei pelas margens do rio em Jacarta (Indonésia), onde passeiam crianças nuas e o cheiro a podridão dá vómitos. Eu já passei pelos subúrbios de Kuala Lumpur (Malásia) e vi barracões mal-amanhados a servirem de casas a centenas de pessoas. Eu já vi o amontoado de casas meias destruídas que pontilham as pequenas montanhas dos arredores de Ancara (Turquia). Mas, mesmo assim, não consegui deixar de me surpreender com o que vi em São Paulo. Porque em todos os outros lugares por onde passei havia sempre uma barreira entre mim, turista deslumbrada à descoberta de um mundo ainda desconhecido, e a pobreza, a realidade pura e dura que faz parte de qualquer país, mas que sempre se tenta esconder e arrumar para a periferia, para o gueto. Em São Paulo, a realidade é outra, não há filtros, não há distanciamento. Não dá para fingir que não existe, ou que não se viu. Será que era? Olha de novo. Era, sim! Era alguém a procurar no lixo, era alguém a encolher-se dentro do cobertor no chão frio do Inverno paulista, era alguém com a mão estendida a pedir uma esmola, era alguém a perseguir-nos para conseguir uns trocos. Em São Paulo, a pobreza não está (só) nas redondezas, nos becos escuros de uma noite gelada de Julho. A decadência humana está presente nos lugares mais movimentados da cidade e já faz parte da paisagem. Perante tamanha transparência e honestidade, eu não podia deixar de cantar a minha ode a São Paulo e a todos aqueles que lutam para fazerem do Brasil um país melhor e acabar com o enorme fosso social. Mais: a minha ode é para todos aqueles que lutam todos os dias por um pedaço de pão e um chão para dormir.


Cheguei ao centro de São Paulo de noite, o que não abonou nada a favor da nem sempre óbvia beleza da cidade. O que mais confusão me fez no início foi o emaranhado de cabos eléctricos que cobrem as ruas paulistas. É feio e perigoso. Acredito que os habitantes de São Paulo já nem reparem nos cabos, mas ao olhos de um recém-chegado é algo perturbador. De qualquer forma, segui com o meu guia paulista até Tatuapé, onde jantámos no restaurante "Confraria Viseu". Como não podia deixar de ser, o jantar foi churrasco misto, com direito a picanha, fillet, lombo, linguiça e farofa, claro.

Restaurante "Confraria Viseu", fundado por um português

Churrasco misto

Depois do jantar, seguimos para o "Espaço Mini" na Praça Roosevelt, que é ao mesmo tempo um bar e espaço de teatro da Companhia da Revista. Havia música ao vivo e, claro, caipirinhas sem poupar na cachaça!





O dia seguinte começou cedo com uma visita à Catedral Metropolitana de São Paulo. Quando lá chegámos, ficámos surpreendidos com a quantidade de pessoas que estavam na praça e jardim em frente à catedral. Inicialmente não percebemos muito bem o que se passava. Seria uma manifestação? Mas não havia ninguém a empunhar cartazes nem a gritar palavras de ordem. Percebemos então que eram "moradores de rua", como dizem no Brasil, e ali era a sua casa.










Marco zero de São Paulo
Estátua do Apóstolo Paulo


Monumento ao Padre José de Anchieta, um dos fundadores da cidade de São Paulo

Qualquer local é apropriado para tocar e dançar música sertaneja

Da Praça da Sé seguimos para o Pátio do Colégio, onde foi construído o primeiro edifício de São Paulo que pertence à Companhia de Jesus.

"Beco do Pinto", que faz lembrar as ruelas de Lisboa



"Luta Popular por Moradia"


Pátio do Colégio

Marco da Paz


Da parte mais histórica da cidade, seguimos caminhando até ao famoso Mercadão, o Mercado Municipal de São Paulo. O Mercadão tem um pequeno Portugal dentro dele e eu senti-me em casa no meio de tanto bacalhau, tremoços, presunto, queijo, azeite, e até pastéis de Belém.



Mercadão













A famosa "Barraca do Juca" da telenovela "A Próxima Vítima"


O almoço foi no "Bar do Mané", onde fazem a gigante sanduíche de mortadela. A minha deu para o almoço e ainda sobrou metade para o jantar.













Última paragem: a Estação da Luz. Para quem adora comboios como eu, a estação paulista foi um dos pontos altos da minha visita a São Paulo. Bem sei que a estação se chama Luz porque fica no bairro da Luz, mas prefiro acreditar que o nome se deve à arquitectura da estação que convida a luz exterior a entrar e a iluminá-la, tornando a Estação da Luz ainda mais bonita.







Há um piano e qualquer pessoa pode criar a banda sonora da estação.
Este senhor não era especialmente dotado, mas valeu a tentativa.





Atravessando a estrada, nas costas da estação, fica o Jardim da Luz, verde e agradável até no Inverno.










Despedi-me de São Paulo na maior e mais movimentada avenida da cidade: a Avenida Paulista. Lembro-me da frase do jornalista norte-americano Seth Kugel num artigo sobre São Paulo no "The New York Times" que dizia: "It may be the ugliest, most dangerous city you'll ever love". Ainda tenho um longo caminho e mais umas quantas visitas para passar a amar São Paulo, mas ao fim de três dias já posso dizer que não odeio São Paulo.