sábado, 7 de junho de 2014

Os meninos do mar



Eu sempre gostei do mar. Sempre achei aquele balanço das ondas, que produz uma das mais belas melodias da natureza, tranquilizador e fascinante. Impressionante aquilo das marés. Para onde vai o mar na maré baixa? Quando era pequena, acreditava que havia uma espécie de ralo como na banheira e alguém abria ou tapava o ralo conforme a hora do dia. Bem sei que a ciência explica as marés, mas é mais giro acreditar que há uma espécie de magia e um ritual secreto. Mas eu também sempre temi o mar. Talvez as ondas do norte de Portugal não fossem para mim. Tinha medo que aquele gigante, qual Adamastor, me pudesse engolir. Sempre tive muito respeito pelo mar, mas sempre houve uma distância de segurança entre nós dois.


 Os meninos do mar nunca tiveram problemas desses. Nasceram no mar, foram criados no mar e no mar hão-de morrer. Conheci os meninos do mar na minha viagem às Maldivas. Serenos, chegaram ao hotel onde estava hospedada para me levarem a conhecer o mar. Nunca tinha nadado em mar aberto, muito menos alguma vez tinha feito snorkeling (para quem não sabe, é uma espécie de mergulho, mas à superfície da água, ou seja, mergulho para totós). Estava ansiosa e ao mesmo tempo preocupada. Não sabia como é que o mar me iria receber. É certo que estava com os meninos do mar, era uma das suas protegidas, mas o mar podia não gostar de mim. De qualquer forma, entrei no barco e fui sem saber muito bem para onde. O mar de água azul esverdeada não podia esperar mais.











Barbatanas nos pés, máscara e respectivo tubo respiratório, o mar, eu e os meninos do mar. Saltei para a água a medo. Estava morna. "Aguento no máximo uns 15 minutos e depois volto para o barco! Não há mal nenhum em não gostar disto!", disse a mim mesma. Os meninos do mar, veteranos nestas lides, explicaram que iríamos ficar naquela zona durante cerca de 45 minutos e depois iríamos para outro local. Se estivéssemos cansados, bastava acenarmos para o barco e vir-nos-iam buscar. No início, lutei contra o tubinho respiratório e foi uma longa batalha até ele se portar como tivesse nascido comigo há 24 anos, isso só aconteceu no terceiro e último lugar que visitámos.




Comecei a olhar para o fundo do mar e ele começou a mostrar-me as suas maravilhas. Senti-me a invadir o seu mundo, o seu mais profundo segredo. Mas ele não parecia importar-se com isso. Olha ali uma raia! E o polvo escondido entre os corais! Um pequeno tubarão lá ao fundo! Passa agora um cardume de peixes pequeninos na sua natação sincronizada. E outro peixe qualquer que não sei o nome, porque a fauna marinha nunca me interessou muito. Toquei nos corais! De cada vez que os meninos do mar encontravam um dos seus velhos amigos do mar vinham chamar-nos com o entusiasmo de quem tem a certeza de que iríamos gostar de os conhecer. Os meninos do mar vivem naquelas águas há muitos anos: comem o que o mar lhes dá, trabalham no mar, recebem dinheiro por estarem debaixo de água (que emprego de sonho!), divertem-se no mar. E, no entanto, nunca param de se surpreender com o mar. Todos os dias é como se o vissem, cheirassem, sentissem o seu sabor salgado pela primeira vez. Todos os dias apaixonam-se um pouco mais por aquela imensidão de água. Parece difícil entender como é que não nasceram com barbatanas e guelras. Aqueles meninos e aquele mar são um só.

"Os meninos do mar"

Ahmed e Mati

Mati


Ahmed e Mati

Já temos que voltar para a terra e para as nossas simples vidas de comuns terrestres? Já? Porquê? Só mais 5 minutos! E foi assim que também eu, por algumas horas, fui uma menina do mar.



quinta-feira, 5 de junho de 2014

Ancara: entre o ocidente e o oriente

Ancara não é uma cidade bonita. Não é, pronto. Eu até sou uma turista que tenta sempre encontrar algo de belo em qualquer canto do mundo, mas desta vez foi muito difícil. Visitei Istambul em 2010 e fiquei maravilhada com a cultura turca, por isso tinha grandes expectativas em relação a Ancara. Iria reencontrar amigos, a comida turca nunca desilude, ia mergulhar de novo na Turquia, o que poderia correr mal? 

Ancara é um primo afastado da Europa (fez-me lembrar a Grécia em muitas coisas) e é um parente afastado do mundo árabe (apesar do Erdogan se querer aproximar dos primos árabes, nunca chamem árabes aos turcos!!). Consegui identificar traços de ambos, a Turquia é uma mistura de culturas, mas ainda assim é algo completamente único e diferente. 




Ancara recebeu-me com frio e um vento gelado, que me fez pensar estar às portas do Inverno e não em plena Primavera. A cidade é movimentada e jovem, as pessoas são amáveis e simpáticas, mas têm um enorme problema: não falam inglês, nem os mais novos! Por isso, é muito complicado comunicar com eles, apesar de tentarem ajudar e tentarem dar indicações através da linguagem gestual. Apreciei o esforço.


O primeiro de três dias em Ancara começou com uma visita à mesquita "Kocatepe", a maior da cidade. A mesquita é grande e é possível vê-la bem antes de chegarmos perto dela, devido à sua dimensão. Quando lá cheguei, vi um grande aparato de carros, polícia, pessoas. "Uma manifestação?", pensei toda entusiasmada com a ideia. Infelizmente, era o funeral de um criança. Não foi bonito. Acabei por não entrar por ser hora de rezar.










Depois da mesquita, segui em direcção a Kizilay, o centro da cidade. Como em qualquer capital, o centro de Ancara é agitado, cheio de pessoas na sua azáfama diária, vêem-se muitos jovens pelas ruas, o comércio é muito activo, os restaurantes estão sempre cheios. 






As ruas não são bonitas. Os edifícios servem apenas para cumprir a sua função de abrigo, sem qualquer preocupação estética. O pavimento das ruas está deteriorado e não parece haver qualquer intenção de o arranjar. Em algumas zonas, o espaço para os peões é quase inexistente, e o tráfego é intenso.









O primeiro jantar em Ancara foi numa zona perto do centro muito frequentada pelos noctívagos da cidade. A "Tunus street" está cheia de bares e restaurantes e é uma das zonas preferidas dos turcos para sair à noite e para se divertirem. Como adoro a comida turca e a simpatia dos turcos, passou a ser também o meu sítio favorito na cidade.

Não me lembro do nome, mas era delicioso!
Não podia ir à Turquia e não beber um café turco! O sítio escolhido foi o "LemanKultur". Este é um café que começou por ser uma revista de caricaturas, expandiu o negócio para uma cadeia de cafés, ganhou fama como café, e agora é só mesmo café, porque a revista deixou de existir. Há vários na cidade, e vale a pena visitar pela decoração, como não podia deixar de ser, as paredes estão revestidas com caricaturas. O "LemanKultur" tem também fama de ser um opositor do regime de Erdogan e por isso algumas caricaturas reflectem isso mesmo. Vamos esperar que não lhes fechem a porta do estabelecimento.


Aprendi a ler as borras do café. 

1. Depois de beber o café (pára quando começar a ficar amargo e espesso porque o sabor é horrível!), vira a chávena ao contrário em cima do prato. Espera até a chávena ficar fria.


2. Depois de a chávena estar fria, pede um (ou vários) desejo(s) e levanta a chávena do prato. 


3. Usa a tua imaginação para prever o que vai acontecer no futuro.


4. Por fim, coloca o prato em posição lateral. Se as borras escorregarem na direcção do chão, os teus desejos irão realizar-se. Dependendo da velocidade a que escorregarem, realizar-se-ão num futuro próximo ou longínquo.





O segundo dia em Ancara chegou e resolvi sair um pouco da zona central da cidade e explorar os lugares assinalados no mapa como turísticos. Com a minha garrafa de sumo de laranja natural (há bancas com senhores a espremer laranjas um pouco por toda a cidade), meti-me no metro em Kizilay e saí em Ulus, uma zona com vários museus e que, segundo me disseram, valia a pena visitar. Já fora da estação de metro, comecei a tentar perceber para que direcção deveria ir. Procurei os museus no meu mapa, mas a porcaria do mapa que me deram no hotel não tinha metade das ruas assinaladas (aconteceu-me o mesmo em Istambul), por isso só me restava perguntar às pessoas, usando linguagem corporal, claro! "Sempre em frente", diziam uns. "Para a direita", diziam outros. "Vire à esquerda depois dos semáforos", exclamavam confiantes. Já estava quase a insultar as pessoas que me tentavam ajudar em vão. Lembro-me de ter balbuciado até um "I hate this city" ou um revoltado "Why don't you learn english at school?". Recusei-me solenemente a entrar num taxi e por isso andei uma hora para encontrar o "Museum of the War of Independence" que fica a cinco minutos da estação de metro de Ulus.









Entrada do Museu 
Visitei o Museu que outrora foi o primeiro grande edifício da Assembleia Nacional em 10 minutos. O edifício parece ter muito significado na história da Turquia: foi ali que se aprovou a primeira constituição e o primeiro hino nacional, se estabeleceu Ancara como capital, e se proclamou a República da Turquia. Mas infelizmente não valeu a lira que paguei. Não se podia tirar fotografias, o que me irritou logo tremendamente. Todas as legendas dos objectos estavam, em turco, nada de traduções em inglês.

Foto da primeira Assembleia Nacional tirada à socapa


Depois do Museu, mais uma hora para encontrar "Ankara Evleri", um local interessante, mas ao mesmo tempo estranho, onde podemos ver casa tradicionais turcas. É um local com imensos pedintes, incluindo crianças, aliás, como acontece um pouco por toda a cidade. Não cheguei a perceber se havia pessoas a viverem realmente naquelas casas, penso que não.










Lá no alto da montanha, do outro lado, vê-se o castelo, que visitaria no dia seguinte. Ainda lá do alto, vê-se ao fundo casas minúsculas amontoadas umas em cima das outras, fazendo lembrar as favelas do Rio de Janeiro. Continuando o caminho pelas casas turcas encontra-se uma mesquita.






A chuva apareceu mesmo na hora do almoço que isto de andar perdida dá muita fome. Os restaurantes nesta zona não são os melhores de Ankara nem têm o melhor aspecto, mas a comida turca é sempre óptima!

Iskender
No geral, os restaurantes são muito bons, especialmente na zona da Tunus street, ou seja, come-se bem e barato em todo o lado. A comida turca é excelente, é um facto. Mas o aspecto de grande parte dos restaurantes em algumas zonas (por exemplo, em Ulus) deixa um pouco a desejar e faz lembrar uma roulote de kebabs na berma da estrada. Oferecem sempre a salada e um chá no final.


No último dia fui então visitar o tal castelo. Assinalado no mapa dado aos turistas e recomendado pelos locais, depositei grande esperança no castelo. Poderia ele salvar uma viagem que não foi especialmente rica em monumentos e atracções turísticas? Mais uma vez, com a respectiva garrafinha de sumo de laranja natural, dirigi-me para Ulus logo pela manhã. Desta vez não houve engano do caminho a seguir. Era só subir a estrada que dava acesso ao castelo lá no alto.

Empreendedorismo: Senhor com uma balança que cobrava às pessoas que se quisessem pesar





"Ankara Evleri"

"O morro"




A subida é interminável e tive que fazer várias paragens, para descansar e recuperar o fôlego, e também para apreciar a vista sobre a cidade, claro.






Parei. Olhei para a entrada que dava acesso ao interior das muralhas. Apareceu-me ver casa habitadas e pessoas e carros. Mas existem pessoas a viver aqui? A família real turca não será com certeza. Continuei.




Sim, vivem de facto pessoas dentro das muralhas do castelo. As casas são velhas e degradadas, assim como os carros, até os animais têm um ar sujo e esfomeado. Há crianças a brincar na rua. Há mercearias e pequenos cafés. É um pequeno mundo dentro daquelas muralhas, como se as pessoas que ali vivem vivessem na sua bolha e não tivessem que sair dali para fazer nada. Senti-me a invadir a sua bolha. De máquina fotográfica em punho e olha curioso, era óbvio que não pertencia àquele mundo.




E enfim, a tão aguardada e sofrida chegada ao castelo. O quê? É isto o castelo? Galinhas e galos a passearem-se, roupa estendida, uma casa, um miúdo a brincar com um cão. Um castelo minúsculo no qual nem se pode entrar.










Em tempos agitados e de protestos contra o governo de Erdogan, isto foi o mais próximo que vi de uma manifestação. Há cartazes espelhados pela rua que apelam à revolução, e há jovens a exaltarem Che Guevara, mas talvez por causa da forte repressão os tumultos parecem ter diminuído. Embora a revolta ainda esteja bem acesa dentro dos turcos.



Obrigada aos anfitriões Ozlem e Kutlu! Thank you!